O SACERDÓCIO DO CRISTÃO
INTRODUÇÃO:
Quando
Martinho Lutero afixou as 95 Teses na porta da Capela de Wittenberg, em
31/10/1517, queria Reforma, não separação, entretanto a Igreja Católica passou
a pressioná-lo a retratar-se e em 1520 saiu a Bula Papal dando-lhe 60 dias para
retratar-se (Leão X – Exsurge Domine),
asseverando que “Um Javali havia entrado na vinha do Senhor”, e que seus livros
deveriam ser queimados. Nesse mesmo ano Lutero escreveu três panfletos
importantes:
1. Apelo à Nobreza Alemã - Atacou a hierarquia da Igreja de Roma. Lutero
questionava o ensino da Igreja de que somente o Papa poderia interpretar as
Escrituras e convocar um concílio reformador. Defendia que as Escrituras eram
autoridade superior ao papado e que os príncipes poderiam reformar a Igreja se
fosse necessário.
2. O Cativeiro Babilônico da Igreja - Desafiou o sistema sacramental da Igreja romana.
3. Sobre a Liberdade do Homem Cristão - Atacava a teologia da Igreja católica ao
afirmar o sacerdócio de todos os crentes como resultado da fé pessoal em
Cristo.
No dia
10/11/1520, Lutero rompeu definitivamente com o Papa queimando em
público a bula papal de sua excomunhão junto com um exemplar da Lei Canônica.
Ao tratarmos da questão do
sacerdócio de todos os crentes precisamos nos precaver de duas tendências que
têm sido juntas prejudiciais à vida da igreja.[1]
A primeira delas é a de achar que a doutrina do sacerdócio universal
de todos os crentes decreta a abolição do ministério ordenado dentro da igreja. Essa afirmação vai contra textos como I
Timóteo 3.1, que afirma que almejar o episcopado é uma aspiração
considerada “excelente” e digna, o que nos leva a entender que é desejo de Deus
que essa função faça parte permanente da estrutura da igreja.
No Novo Testamento, esses
superintendentes são chamados de pastores. O uso moderno do termo “ministros” é
prejudicial, pois “engana por ser mais genérico do que específico, e sempre,
portanto, requer um adjetivo qualificante para indicar que tipo de ministério
está em mente”.[2]
“Sacerdote”, outra palavra usada atualmente é ambígua, porque conduz ao tipo de
ministério praticado no Antigo Testamento, quando o sacerdócio era voltado
principalmente para Deus no oferecimento de “dons e sacrifícios”, enquanto que
no Novo Testamento, o ministério pastoral é voltado especialmente para a
igreja. Os líderes das igrejas neotestamentárias nunca são chamados de
sacerdotes, mas somente de pastores, bispos, presbíteros, e as funções destes são
sempre descritas como pastorais (At 20.28; 1 Pe 5.1,2).
A principal função do pastorado é alimentar as
ovelhas, que é uma metáfora para o ensino. O pastor do Novo Testamento é também
um mestre da Palavra (Ef 4.11). Essa função, segundo o Novo Testamento não é
incompatível com as declarações bíblicas de que na Nova Aliança “todos me
conhecerão” e de que o Espírito Santo é “a unção que procede do Santo” e que os
crentes devem ser habitados ricamente pela palavra de Cristo a fim de ensinarem
uns aos outros (Jr 31.34; 1 Ts 4.9; 1 Jo 2.20-27; Cl 3.16), porque o dom de pastor-mestre também é uma
concessão graciosa de Cristo à sua Igreja (Ef 4.11). O ministério pastoral é
uma provisão divina, sendo uma tolice rejeitá-lo. Fica claro em Tiago 3.1que
essa função não é para ser desempenhada por todos!
"Meus irmãos, não vos torneis, muitos de vós, mestres, sabendo que
havemos de receber maior juízo. Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se
alguém não tropeça no falar, é perfeito varão, capaz de refrear também todo o
corpo".
A segunda é a de
acreditar que essa doutrina implica que cada cristão é seu próprio sacerdote,
não precisando de qualquer auxílio externo à prática de sua vida cristã, mas
possuindo o “direito do julgamento privado”. Essa compreensão fomenta o individualismo
e pode ser colocada no fundamento de muitas cisões e divisões nas igrejas
cristãs, visto que muitas igrejas surgem por desentendimentos e pura
desobediência a uma liderança constituída. É comum vermos cristãos descontentes
usar desse argumento para não submeterem-se à liderança. Eles dizem: “_ Eu
tenho o Espírito Santo e leio a Bíblia em casa, não preciso da igreja!”
Nenhuma
dessas duas compreenções contemporâneas define o objetivo original de Lutero quando cunhou o termo no início da
reforma protestante em 1520. Entretanto, a essência do pensamento de Lutero
pode ser declarada da seguinte forma: “Todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes
uns dos outros”.[3]
O
pensamento de Lutero caminhava numa direção bem equilibrada do que as propostas
anteriores. O sacerdócio de todo cristão quer dizer que os ofícios sacerdotais
são propriedade comum de todos os cristãos, e não uma prerrogativa de uma casta
espiritual de homens santos.
A base bíblica para esse
sacerdócio se encontra em I Pedro 2.9 e Apocalipse 1.6. Pedro apresenta o
sacerdócio dos crentes associado à sua eleição e santidade como povo de Deus e
acrescenta que esse sacerdócio é real.
Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real,
nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as
virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;
O sentido do sacerdócio ser
real é porque serve ao Rei de toda a terra e ao reino de Cristo. Essa
associação também é presente em Apocalipse 1.6, visto que os sacerdotes são
para o seu Deus e Pai, partindo de um ato constitutivo, ou seja, uma
determinação do próprio Cristo.
"E nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus
e Pai, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém!"
O
sacerdócio de todos os cristãos é tanto uma responsabilidade quanto um
privilégio, um serviço quanto uma posição. Em Cristo, Deus nos fez um corpo.
Isso quer dizer que a nossa unidade e igualdade nele é demonstrada por nosso
amor mútuo e nosso cuidado uns pelos outros. Cada um de nós pode ir
pessoalmente à presença de Deus e interceder pelo outro através da mediação
única de Cristo. Ninguém pode ser um cristão sozinho, todos precisamos uns dos
outros. Esse é o âmago da doutrina do sacerdócio de todos os crentes.
Por outro
lado, o sacerdócio de todos os crentes é uma outra forma de definir a igreja.
Lutero a chamava de communio sanctorum,
ou a comunidade ou comunhão dos santos. Não são santos que estão no céu, mas os
santos que estão e vivem atualmente na terra. “A igreja é uma comunidade de
intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família em que as
cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente _ essa é a communio sanctorum”.[4]
O
sacerdócio dos crentes não é diferente do sacerdócio dos pastores na essência,
mas somente nas funções que são exercidas.
O que significa oferecer sacrifícios de louvor por meio
de Cristo?
Há quatro
passagens relevantes nas Escrituras que precisam ser revisitadas a fim de
formularmos o nosso conceito do sacerdócio de todos os crentes. Essas quatro
referências bíblicas serviram de base para a associação da ceia com a idéia de
sacrifício pelos Pais Apostólicos e
posteriormente e principalmente pelos Pais Apologistas e Polemistas.
a) Em Paulo.
Romanos
12.1 – “Rogo-vos,
pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício (qusi,an) vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional”.
Graças
à oferta que Cristo fez de si mesmo na cruz, os sacrifícios de animais
tornaram-se obsoletos. Oferecer um “sacrifício vivo” não tem qualquer ligação
com a celebração da ceia em Romanos, mas significa, antes, que os crentes são
exortados a deixar que a renovação das suas mentes, pelo poder do Espírito
Santo, transforme as suas vidas de conformidade com a vontade de Deus[5].
Segundo Calvino, o objetivo de Paulo aqui é “ensinar que não mais nos pertencemos, senão que passamos a
pertencer inteiramente a Deus”[6].
O sacrifício oferecido de agora em diante é da vida toda consagrada a Deus.
b) Em Hebreus.
Hebreus
13.10 – “Possuímos
um altar (qusiasth,rion) do qual não tem direito de comer os
que ministram no tabernáculo”.
Hebreus 13.15,16 – “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos
sacrifícios (qusi,an) de louvor, que é fruto de lábios que confessam o seu nome.
Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com
tais sacrifícios (qusi,aij), Deus se compraz”.
O Novo Testamento não
emprega o uso de altar para o culto cristão após a ressurreição de Cristo. Após
a ascensão de Cristo, Ele se assentou no seu trono à direita de Deus (Ap 3.21).
É ao seu trono que os cristãos devem se achegar para receber socorro em ocasião
oportuna (Hb 4.16), e não diante do seu altar. A mediação de Cristo substitui e
cumpre o papel dos sacrifícios da antiga aliança (Ef 2.11-19). A cruz foi o
último altar; essa é a linguagem de Hebreus 13.10, onde altar “é uma metonímia para sacrifício e
refere-se ao sacrifício de Cristo, cujos benefícios são eternamente acessíveis”[7].
O altar que possuímos é a cruz e a oferta definitiva nela oferecida foi o
sangue de Cristo.
Não há qualquer razão para
ver nessa passagem uma referência a uma interpretação sacrificial da ceia, pois
a palavra “altar” é usada como um termo geral para os benefícios do sistema
inteiro. Ademais, a linguagem de Hebreus é muita clara ao afirmar a unicidade e
suficiência do sacrifício de Cristo, que foi oferecido “uma vez por todas” (Hb
7.27 - evpoi,hsen evfa,pax); “uma única vez” (Hb 9.26
- a[pax evpi. suntelei,a|); “uma vez para sempre” (Hb
9. 28 - a[pax prosenecqei.j) e “com uma única oferta”
(Hb 10.14 - mia/| ga.r prosfora/) realizou a justificação
dos eleitos, não havendo qualquer necessidade de sua continuidade na nova
aliança, uma vez que foi ratificada de uma vez por todas no seu sangue já
derramado na cruz.
Portanto, os sacrifícios
mencionados não são sacrifícios de sangue derramados sobre um altar. Os
sacrifícios que os cristãos devem oferecer são claramente qualificados como
“sacrifícios de louvor”, que procedem de lábios, logo, são manifestações
verbais de adoração (orações principalmente, e também canções) e não ações
desempenhadas diante de um altar ou sobre ele. As campanhas das igrejas
evangélicas classificadas como um sacrifício oferecido a Deus se assemelha mais
ao culto de relíquias da igreja católica da idade média que à intenção original
do autor de Hebreus aqui.
Donald Guthrie[8]
qualifica os “sacrifícios de louvor” como ações de graça e que estão em
contraste com o sacrifício de Cristo, visto que este foi único e definitivo,
enquanto que os outros devem ser constantes e oferecidos “por meio de Cristo”,
pondo em relevo a dependência do primeiro. O verso seguinte esclarece ainda
mais a questão, demonstrando que o autor de Hebreus tem em mente não a ceia ou ministrações levíticas dentro
de um templo, mas “a prática do bem e a mútua cooperação”, descrevendo-os como
sacrifícios que agradam a Deus. O sentido pretendido pelo autor, em conclusão,
é o mesmo dado por Paulo a “sacrifício vivo” em Romanos 12.1,2.
Colin Brown coloca a questão
da seguinte forma[9]:
O que o autor tem em mente, portanto, é
algo muito mais amplo do que a eucaristia, que não menciona aqui nem por
qualquer referência ao pão e vinho trazidos por Melquisedeque (7.1). É somente
nos escritos de uma data muito posterior que a Mesa do Senhor foi mencionada
como sendo um altar (possivelmente Ireneu, Haer.
4, 18, 6; Tertuliano, De Oratione 19;
De Exhortatione Castitatis 10; e
regularmente a partir de Cipriano”.
A associação clara de qusiasth,rion e qusi,a com a ceia só vai acontecer a partir dos Pais
Apologistas. A fonte citada por Colin Brown em sua conclusão é o comentário de
Hebreus de B. F. Westcott, onde o mesmo faz uma pesquisa completa sobre o
desenvolvimento histórico da palavra “qusiasth,rion”. Westcott é um dos mais
respeitados comentaristas do Novo Testamento.
c) Em Pedro.
I Pedro 2.5 – “Também vós mesmos, como pedras que
vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de
oferecerdes sacrifícios (qusi,aj) espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”.
Pedro
afirma que o sacerdócio dos cristãos não tem nada a ver com o oferecimento de
sacrifícios da antiga aliança, mas são “sacrifícios espirituais”, que no v. 9
serão associados com a proclamação das “virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz”.
No Texto, fica claro que este sacerdócio é coletivo, englobando todos os
eleitos; não tendo nada a ver com a manutenção de um clero sacerdotal. Todos os
cristãos são sacerdotes e todos participam do sacerdócio. Também fica claro que
os sacrifícios são oferecidos por meio de Cristo, não sendo o oferecimento do
próprio Cristo em qualquer tipo de cerimônia ou celebração cúltica. Cristo é o
mediador de qualquer manifestação cúltica da vida da Igreja.
Além
disso, Pedro chama esse sacerdócio de “santo” porque visa o oferecimento de
sacrifícios que “agradáveis a Deus”. Esses sacrifícios não são sacrifícios de
redenção, mas sacrifícios de gratidão a Deus pelo sacrifício único de Cristo;
também não são sacrifícios físicos, mas espirituais. Nossos sacrifícios
espirituais, como expressão do nosso sacerdócio, são praticados nos atos de
louvor e gratidão, e no serviço altruísta ao nosso próximo, quando os acudimos
em suas necessidades (Hb 13.15,16).
Conclusão:
O sacerdócio de todos os
crentes é o sacerdócio daqueles que foram unidos a Cristo pela fé. Eles
exercitam seu sacerdócio através da prática dos dons espirituais concedidos
pelo Espírito Santo no contexto do serviço cristão ao próximo motivado pelo
amor a Cristo.
Aplicar o sacerdócio do Cristo
àquilo que acontece somente dentro do templo na hora da adoração é uma redução
do seu significado à insignificância, porque ministrar à vida é muito mais que
o que acontece dentro do templo. Até mesmo os pastores não ministram o
evangelho somente no período do culto. O que sustenta o ministério pastoral é
exatamente aquilo que é feito no intervalo de tempo entre um culto e outro. O
sacerdócio é para a vida e não somente para o culto no templo.
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Palestra proferida em 02/12/2004 no retiro de homens da 1ª Igreja Presbiteriana de Uberlândia-MG.
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Palestra proferida em 02/12/2004 no retiro de homens da 1ª Igreja Presbiteriana de Uberlândia-MG.
[1] Timothy
George, Teologia dos Reformadores,
Vida Nova, p.96.
[2] John R.
W. Stott, Eu Creio na Pregação, Vida,
p.123.
[3] Timothy
George, Teologia dos Reformadores, p.96.
[4] Timothy
George, Teologia dos Reformadores,
p.97.
[5] F. F.
Bruce, Romanos, Introdução e Comentário,
Vida Nova / Mundo Cristão, 182.
[6] João
Calvino, Romanos, Paracletos, 423.
[7]
Donald Guthrie, Hebreus, Introdução e
Comentário, Vida Nova/ Mundo Cristão, 254.
[8] Donald
Guthrie, Hebreus, p.254.
[9] Colin
Brown, “Sacrifício”, NDITNT vol. IV,
319.