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A Genebra de João Calvino.

Figura 1: Genebra por volta de 1540

A GENEBRA DE JOÃO CALVINO
Rev. Helio O. Silva, STM.[1]

Genebra e a Confederação Helvética.
Falar de Calvino é falar de Genebra, pois só é possível entender sua história e seu pensamento no contexto de sua influência sobre essa cidade e dessa cidade sobre ele. Ele mesmo julgava essa relação embaraçosa e muitas vezes irritante.[2]
Genebra iniciou o séc. XVI lutando contra a tirania do Duque de Savoy e de seu bispo.

A Suíça do século XVI estava dividida em três unidades distintas: a Confederação Helvética (Zurique, Berna, Lucerna, Basiléia e Frburgo – somavam 13 estados); Valais e as Três Ligas Réticas.[3] Genebra figurava como uma cidade-estado independente aliada, mas não ainda membro da Confederação Helvética. Sua população se dividia em dois partidos: Os mammelus (conservadores que apoiavam o domínio francês de Savoy) e os Eidguenots (opostositores a Savoy em favor da Confederação Helvética). Eidguenots é uma palavra alemã que significa “confederados”.[4] Savoy perdeu sua autoridade política sobre Genebra em 1526, quando esta entrou em aliança com Berna e Friburgo, antes da reforma celebrar em Genebra o seu primeiro culto em 1533 sob a direção de Farel. Oficialmente a cidade aceitou a reforma em 21/05/1536.

Organização político-administrativa da cidade.


1. Pequeno Conselho (Petit Conseil).
Era o que realmente governava a cidade. Seus membros eram chamados de “magníficos senhores”, “senhores de Genebra” ou de “síndicos do conselho”.[5] Tinham o poder de aplicar a pena de morte sem direito a apelação acima de sua jurisdição. Seus membros eram escolhidos pelo Conselho dos Duzentos, pelos síndicos que deixavam o cargo e pelos novos síndicos. Com exceção dos síndicos, todos podiam ser reeleitos.
Sua complexa forma era constituída assim: 4 síndicos do ano + 4 síndicos do ano anterior (8 membros), 1 tesoureiro + 16 cidadãos eleitos = 25 membros no total.
Era responsável pelos assuntos rotineiros da cidade, inclusive a defesa, guarda e execução de prisioneiros.
A função dos quatro síndicos era respectivamente:
(1) O Seniour que presidia o Pequeno Conselho.
(2) Presidia o tesouro e o banco municipal.
(3) Presidia a guarda da cidade.
(4) Supervisionava os 20 distritos de Genebra.[6]
Os quatro primeiros síndicos eram os mais importantes. Um deles era o síndico sênior, quem presidia as reuniões do Pequeno Conselho. Quem ocupasse o cargo de síndico, deveria esperar um intervalo de quatro anos para poder ser eleito para essa função novamente.
Reunia-se três vezes por semana (Segundas, terças e sextas-feiras) e sempre que convocado extraordinariamente. Os síndicos se reuniam diariamente. O Pequeno Conselho subdividia a administração da cidade em várias áreas e nomeava seus membros para a administração da mesma por meio de seis Comissões ao tempo de Calvino (judicial, financeira, defesa, eclesiástica, diaconia, adicionais...). A área eclesiástica gozava de relativa interdependência.


2. Conselho dos Sessenta (Conseil dês Soixante).
Tinha um caráter essencialmente diplomático, interpretado como uma relíquia do século XV e que desapareceu na época de Calvino.

3. Conselho dos Duzentos (Conseil dês Deux Cents).
Também conhecido como Grande Conselho. Seus membros eram criteriosamente escolhidos pelos membros do Pequeno Conselho.[7]

4. Assembléia Geral ou Conselho Geral (Le Conseil General).
O Conselho Geral era formado por todos os cidadãos genebrinos natos (Citoyens) e aqueles que possuíam título de honra conferido pelo Conselho dos Duzentos. Era o órgão de apelação última. Reunia-se duas ou três vezes por ano. Reunia-se em fevereiro para a eleição dos síndicos ou de algum oficial Senior e em novembro para fixar o preço do milho e do vinho.[8] Contudo, a justiça criminal permanecia aos cuidados do Pequeno Conselho.

5. Burgueses (Bourgeois) com posição de honra, o que não afetava necessariamente a questão da cidadania. Esse título era expedido pelo Pequeno Conselho e adquirido por alta quantia em dinheiro. Somente em Genebra havia uma distinção entre Cidadãos e Burgueses quanto a direitos.

6. População em Geral: Homens não cidadãos, geralmente estrangeiros (habitants), mulheres e crianças.

Aos pastores era vedada a eleição para qualquer conselho, tampouco aos estrangeiros que vivessem na cidade e que tivessem comprado o título de cidadãos. Somente após 1555 foi-lhes permitido ascender somente ao Conselho dos Duzentos.[9]

População e Estratificação Social.
Quando chegou a Genebra em 1538 sua população orbitava em torno de 11 mil habitantes. Entre 1545 e 1560 esse número duplicou. Com o recrudescimento da perseguição ao protestantismo Genebra recebeu refugiados italianos, espanhóis, alemães, dos Países Baixos, ingleses, escoceses e principalmente franceses.[10] Mesmo assim de 1500 a 1800, Genebra fora a mais populosa de todas as cidades Suiças. Num raio de 200Km somente Lion (França) e Turim (Itália) eram mais populosas.
Figura 3: O Lago de Genebra

A cidade em si não inspirava opulência. Seus prédios públicos não eram imponentes e sua Universidade só foi fundada pelo próprio Calvino somente em 1559. Não havia indústrias de manufaturas locais nem mestres artesãos. Até mesmo sua relojoaria, que depois se tornaria famosa, e a imprensa, eram conseqüência da imigração francesa.[11]

Genebra era divida em 20 distritos (Dizaimes) tendo cada qual o seu supervisor (capitaine) que era responsável por manter a ordem. Os 12 anciãos (presbíteros) mais velhos do Consistório da Igreja de Genebra eram nomeados pelo Pequeno Conselho para supervisionar cada distrito em particular sob a liderança de um dos síndicos da cidade.[12]

Antes de 1535 a cidade possuía sete hospitais religiosos, que o Pequeno Conselho reduziu a apenas um após as desapropriações feitas com a expulsão dos padres e freiras da cidade a fim de se implementar a reforma protestante. O administrador do hospital era um diácono hospitalário,[13] nomeado pelo Pequeno Conselho dentre os eleitos pela assembléia da igreja.

Havia uma pequena casa de detenção inadequada para longos aprisionamentos em caso de crimes graves. Por isso, as penalidades aplicadas eram:
1. A pena de morte: Simples (por decapitação) ou com tormentos (mutilação, por queimaduras com fogo brando).
2. Exílio: (a) Definitivo (definilus) cm confisco de propriedades. (a) Temporário, como por exemplo “um ano e um dia”, ou mais tempo.
3. Açoites: que eram inconvenientes para cavalheiros.
4. Pagamento de multas: As multas eram pesadas e difíceis de ser recolhidas.
5. Humilhação pública: descrita como a sentença para se pedir clemência a Deus e à justiça. Podia ser aparecer em público trajando roupas de humilhação, carregando uma tocha, pedindo perdão em lugares específicos da cidade.
6. O governo da cidade era avesso a torturas, por isso preferia a pena de morte. As torturas eram permitidas somente em caso de bruxaria.[14]

Econômica e politicamente estava vivendo um importante tempo de transição. Genebra era uma cidade-estado republicana (civitas) que tinha em sua Assembléia Geral o principal órgão de poder político. Sua língua oficial era o francês, o que a aproximava das práticas legais francesas. Mas o idioma falado era o dialeto patoá de Savoy contendo substancial mistura de alemão.[15]

Ao abraçar a reforma a cidade fora colocada sob interdito pelo duque de Savoy causando desabastecimento. O grande afluxo de estrangeiros que se seguiu gerou tempos de escassez em todo o tempo de Calvino. No início do século XVI a especulação era desenfreada em função da paixão por negócios e pelo jogo. As transformações sociais muito rápidas ocorridas ao tempo de Calvino levaram a nobreza da cidade à ruína.[16] Na virada de 1500 os profissionais mais numerosos em Genebra eram os tabeliães (notários), açougueiros, alfaiates, costureiros, carpinteiros, fabricantes de tecidos, boticários e bolseiros.

A estratificação social era dividida em:[17]
1. Cidadãos (Citoyens): Nascido em Genebra ou batizado por pais nascidos em Genebra
2. Burgueses (Bourgeois): Título adquirido depois de um longo período de residência em Genebra e mediante pagamento de certa quantia determinada pelo Pequeno Conselho. Essa era uma forma de angariar fundos para os cofres públicos em tempos de crise financeira. Em 1547 o Pequeno Conselho se viu obrigado a colocar títulos à venda, o que favoreceu o partido reformador.[18] Nenhum Burguês poderia ser membro do Pequeno Conselho, mas os seus filhos nascidos em Genebra podiam. Todavia um Burguês poderia ser eleito para o Conselho dos Sessenta ou para o Conselho dos Duzentos.
3. Habitantes (Habitants): Eram simplesmente os estrangeiros residentes em Genebra. Não tinham permissão para carregar espadas, nem de participar das eleições ou ocupar cargos públicos, exceto o de pastor ou professor (preletor - lecteur) nas escolas, mesmo assim, somente se não houvesse um nativo capaz de ocupar tais funções. Um habitant era passível de expulsão sumária, o que ocorreu com Calvino em 1538. Calvino foi um habitant até 1559, quando recebeu o título de cidadania (Citoyen) como uma gentileza livre de taxas.

Quanto à reforma a cidade se dividia entre o “partido reformador” e um grupo conhecido como “os libertinos”. Estes últimos eram membros da nobreza que inicialmente apoiaram a reforma, mas que se voltaram contra ela em função de interesses próprios. Eles não tinham um programa de governo definido e haviam desenvolvido uma mentalidade de protesto hostil e exagerada. Suas manifestações contra os regulamentos eram arrogantes e por falta de controle quando em disciplina angariando para eles aversão em vez de simpatia.[19]
Figura 4: Parte velha de Genebra
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Notas:
[1] Pastor-auxiliar da Igreja Presbiteriana Jardim Goiás - Goiânia-GO desde 2015. Bacharel em Teologia (BTh) pelo SPBC (1990) e pela FAIFA (Convalidação) - 2012; Mestre em Teologia Histórica (STM) pelo CPAJ (2004). Doutorando em Ministério pelo CPAJ.
[2] Allister McGarth, A Vida de João Calvino, p. 99.
[3] Armando A. Silvestre; Calvino e a Resistência ao Estado, p.21.
[4] Ibid, p. 22.
[5] Armando A. Silvestre, Calvino e a Resistência ao Estado, p.29.
[6] Ibid, p.52.
[7] Ibid, p.30.
[8] Armando A. Silvestre, Calvino e a Resistência ao Estado, p. 47.
[9] Ibid, p.31.
[10] Ibid, p.35. Após a morte de Calvino a população diminui gradativamente: 21.400 [1560]; 16.000 [1570]; 17.300 [1580]; 14.400 [1590]; 15.600 [1600] (Ibid, p.38).
[11] Ibid, p. 43.
[12] Ibid,p.52.
[13] Havia dois tipos de diáconos na igreja: Um “hospitalário”, que cuidava do hospital público e quatro “procuradores”, que cuidavam dos pobres.
[14] Armando A. Silvestre, Calvino e a Resistência ao Estado, p.51.
[15] Ibid, p. 47.
[16] Ibid, p.59.
[17] Ibid, p.41,42.
[18] Entre 1500 e 1536 foram recebidos 300 novos burgueses a cada ano; entre 1537 e 1547 foram recebidos menos de 20 anualmente (ibid, p. 68); uma clara represália ao partido reformador.
[19] Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, p.51.

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